SANTA MISSA
HOMILIA DO PAPA BENTO XVI
Senhores Cardeais,
Venerados Irmãos no episcopado,
Queridos irmãos e irmãs!
No dia 4 de outubro de 1962, o Beato João XXIII veio em peregrinação a este Santuário para confiar à Virgem Maria o Concílio Ecumênico Vaticano II, que seria inaugurado uma semana depois. Naquela ocasião, ele, que alimentava uma filial e profunda devoção a Nossa Senhora, se dirigiu a ela com estas palavras: «Hoje, mais uma vez, e em nome de todo o episcopado, a Vós, dulcíssima Mãe, que sois invocada como Auxilium Episcoporum, pedimos por Nós, Bispo de Roma e por todos os Bispos do mundo que nos alcance a graça de entrar na sala conciliar da Basílica de São Pedro como entraram no Cenáculo os Apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus: um só coração, uma pulsação única de amor a Cristo e pelas almas, um propósito único de viver e de nos imolarmos pela salvação de cada pessoa e dos povos. Assim, por vossa intercessão materna, nos anos e nos séculos futuros, possa se dizer que a graça de Deus precedeu, acompanhou e coroou o vigésimo primeiro Concílio Ecumênico, infundindo em todos os filhos da Santa Igreja novo fervor, ímpeto de generosidade, firmeza de propósitos» (AAS 54 [1962], 727).
À distância de cinqüenta anos, após ter sido chamado pela Divina Providência a suceder, na Cátedra de Pedro, aquele Papa inesquecível, também vim aqui em peregrinação para confiar à Mãe de Deus duas importantes iniciativas eclesiais: o Ano da Fé, que terá início daqui a uma semana, no dia 11 de outubro, no qüinquagésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, e a Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, por mim convocada para o mês de outubro, com o tema «A Nova Evangelização para a transmissão da Fé Cristã». Queridos amigos! A todos vós dirijo a minha mais cordial saudação. Agradeço ao Arcebispo de Loreto, Dom Giovanni Tonucci, pelas calorosas expressões de boas-vindas. Saúdo os demais Bispos presentes, os Sacerdotes, os Padres Capuchinhos, aos quais está confiada a cura pastoral do santuário, e às Religiosas. Dirijo um deferente pensamento ao Prefeito, Dr. Paolo Niccoletti, a quem também agradeço por suas amáveis palavras, ao Representante do Governo e às Autoridades civis e militares presentes. Expresso o meu reconhecimento a todos aqueles que generosamente contribuíram com a realização desta minha Peregrinação.
Como recordei na Carta Apostólica de sua convocação, através do Ano da Fé “pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé” (Porta fidei,8). E justamente aqui em Loreto temos a oportunidade de nos colocarmos na escola de Maria, d’ela que foi proclamada “Bem-aventurada” porque “acreditou” (Lc 1,45). Este Santuário, construído ao redor de sua casa terrena, guarda a memória do momento no qual o Anjo do Senhor veio a Maria com o grande anúncio da Encarnação, e ela lhe deu sua resposta. Esta humilde habitação é um testemunho concreto e tangível do maior acontecimento da nossa história: a Encarnação; o Verbo se fez carne, e Maria, a serva do Senhor, é o canal privilegiado através do qual Deus habitou entre nós (cf. Jo 1,14). Maria ofereceu a sua carne, colocou-se inteiramente à disposição da vontade de Deus, tornando-se “lugar” de sua presença, “lugar” no qual habita o Filho de Deus. Aqui podemos repetir as palavras do Salmo com as quais, segundo a Carta aos Hebreus, Cristo iniciou a sua vida terrena dizendo ao Pai: «Tu não quiseste vítima e oferenda, mas formaste-me um corpo... Por isso eu disse: “Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade”» (10,5.7). Maria disse palavras semelhantes diante do Anjo que lhe revela o plano de Deus sobre ela: «Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38). A vontade de Maria coincide com a vontade do Filho no único projeto de amor do Pai e nele se unem céu e terra, Deus criador e sua criatura. Deus torna-se homem, Maria se faz “casa viva” do Senhor, templo onde mora o Altíssimo. O Beato João XXIII há cinqüenta anos, aqui em Loreto, convidava a contemplar este mistério, a “refletir sobre esta união do céu com a terra, que é a finalidade da Encarnação e da Redenção”, e continuava afirmando que o próprio Concílio tinha como objetivo estender sempre mais o alcance benéfico da Encarnação e Redenção de Cristo em todas as formas da vida social (cf. AAS 54 [1962], 724). É um convite que ressoa hoje com particular intensidade. Na crise atual que atinge não apenas a economia, mas vários setores da sociedade, a Encarnação do Filho de Deus nos fala de quanto o homem é importante para Deus e Deus para o homem. Sem Deus o homem acaba por deixar prevalecer o seu egoísmo sobre a solidariedade e sobre o amor, as coisas materiais sobre os valores, o ter sobre o ser. É preciso voltar para Deus para que o homem volte a ser homem. Com Deus mesmo nos momentos difíceis, de crise, o horizonte da esperança não desaparece: a Encarnação nos diz que jamais estamos sozinhos, Deus entrou em nossa humanidade e nos acompanha.
Mas o habitar do Filho de Deus na “casa viva”, no templo, que é Maria, nos leva a outro pensamento: onde Deus mora, devemos reconhecer que todos estamos “em casa”; onde Cristo mora, os seus irmãos e as suas irmãs não são mais estrangeiros. Maria, que é a mãe de Cristo é também nossa mãe, nos abre a porta da sua Casa, nos guia para entrarmos na vontade de seu Filho. É a fé, então, que nos dá uma casa neste mundo, que nos reúne em uma única família e que nos faz todos irmãos e irmãs. Contemplando Maria, devemos nos perguntar se também nós queremos ser abertos ao Senhor, se queremos oferecer a nossa vida para que seja uma morada para Ele; ou então, ao contrário, se tememos que a presença do Senhor possa ser um limite para nossa liberdade, e se queremos reservar para nós uma parte de nossa vida, de modo que possa pertencer apenas a nós. Mas é Deus mesmo que liberta nossa liberdade, que a liberta do fechamento em si mesma, de possuir, da sede de poder, de posse, de domínio, e a torna capaz de abrir-se à dimensão que a realiza no sentido pleno: o do dom de si, do amor, que se faz serviço e partilha.
A fé nos faz habitar, morar, mas nos faz também trilhar o caminho da vida. Também a Santa Casa de Loreto conserva um ensinamento importante. Como sabemos, ela foi colocada numa estrada. Isso poderia parecer deveras estranho: do nosso ponto de vista, de fato, a casa e a estrada parecem se excluir. Na realidade, justamente nesse aspecto particular, encontra-se uma mensagem singular desta Casa. Ela não é uma casa privada, não pertence a uma pessoa ou a uma família, mas é uma habitação aberta para todos, que está, por assim dizer, na estrada de todos nós. Então, aqui em Loreto, encontramos uma casa que nos faz permanecer, habitar, e que ao mesmo tempo nos faz caminhar: recorda-nos que somos todos peregrinos, que devemos estar sempre a caminho para outra habitação, para a casa definitiva, para a Cidade eterna, a morada de Deus com a humanidade redimida (cf. Ap 21,3).
Existe ainda um ponto importante do relato evangélico da Anunciação que quero destacar, um aspecto que jamais deixa de maravilharmos: Deus pede o “sim” do homem, criou um interlocutor livre, pede que sua criatura Lhe responda com plena liberdade. São Bernardo de Claraval, em um de seus Sermões mais célebres, quase “representa” a espera da parte de Deus e da humanidade pelo “sim” de Maria, dirigindo-se a ela com uma súplica: «O anjo espera a vossa resposta, porque chegou o tempo de voltar ao que o enviou... Ó Senhora, dai essa resposta, que a terra, os infernos, antes, que os céus esperam. Como o Rei e Senhor de todos desejava ver a vossa beleza, assim deseja ardentemente a vossa resposta afirmativa... Levantai-vos, correi, abri! Levantai-vos com a fé, apressai-vos com vossa oferta, abri com a vossa adesão!» (In laudibus Virginis Matris, Hom. IV, 8: Opera omnia, Edit. Cisterc. 4, 1966, p. 53s). Deus pede a livre adesão de Maria para se tornar homem. Certo, o “sim” da Virgem é fruto da Graça divina. Mas a graça não elimina a liberdade, ao contrário, a cria e a sustém. A fé não tolhe nada à criatura humana, mas permite a sua plena e definitiva realização.
Queridos irmãos e irmãs, nesta peregrinação que repercorre a do Beato João XXIII – e que se dá, providencialmente, no dia em que se celebra a memória de São Francisco de Assis, verdadeiro “Evangelho Vivo” – quero confiar à Santíssima Mãe de Deus todas as dificuldades que vive o nosso mundo na busca de serenidade e de paz; os problemas de tantas famílias que olham para o futuro com preocupação, os desejos dos jovens que se abrem à vida, os sofrimentos dos que esperam gestos e escolhas de solidariedade e de amor. Quero confiar à Mãe de Deus também este especial tempo de graça para a Igreja, que se abre diante de nós. Vós, Mãe do “sim”, que escutastes Jesus, falai-nos d’Ele, contai-nos sobre vossa estrada para segui-Lo no caminho da fé, ajudai-nos a anunciá-lo para que cada homem possa acolhê-lo e se tornar morada de Deus. Amém!