23/04/2014

A ceia pascal dos judeus é, junto com as refeições com Jesus

A Ceia Pascal 

A ceia pascal dos judeus é, junto com as refeições com Jesus, antes e depois de sua páscoa, a chave mais próxima que preparou o sentido da Eucaristia para a primeira comunidade. Uma chave que abarca todas as outras. E foi com esse sentido que os Missionários (as) de Cristo Ressuscitado celebraram também sua ceia Judaica, juntamente com toda família Religiosa.
Nela encontra-se a mais expressiva das refeições sagradas, celebrada como memória do êxodo libertador, participando do cordeiro sacrificado no templo, num clima de louvor a Deus. A categoria da páscoa é importante não só para entender o mistério do próprio Cristo – que no Novo Testamento é apresentado como o verdadeiro Cordeiro pascal que se imola por todos – mas também para entender a Eucaristia. Os sinóticos interpretaram a última ceia de Jesus como ceia pascal, embora não seja bem certo que historicamente o fosse, sobretudo se seguirmos Paulo e João. Mas isso indica que a comunidade entendeu a ceia do Senhor e a Eucaristia como a nova celebração pascal cristã, que leva a seu pleno cumprimento os melhores valores da ceia de Israel.[1]

1.3.1 Origem da festa da páscoa [2]

A páscoa é a festa principal dos judeus e tem raízes bem antigas e complexas, já desde os tempos de Canaã e os patriarcas. Parece que estas raízes devem ser buscadas em duas festas relacionadas com a vida natural: a da imolação dos cordeiros na primavera, rito próprio dos pastores nômades que oferecem a Deus as primícias de seus rebanhos, e a festa dos pães ázimos, rito mais próprio dos povos agrícolas, sedentários, que também oferecem a Deus os primeiros frutos de suas colheitas (cf. Ex 12,15-20).
O povo de Israel, conservando as características destes ritos, acrescentou-lhes, no mesmo marco da primavera, o sentido da libertação e saída do Egito, ou seja, o êxodo e a aliança com Javé no monte Sinai. O que podia ter sido apenas uma festa natural, converteu-se num memorial da salvação operada por Deus em favor de seu povo. A páscoa enriqueceu-se assim em seu conteúdo. Os textos de Ex 12 e Dt 16 já supõem a fusão de todos os elementos, antigos e novos, naturais e salvíficos, dando lugar à grande festa que se celebrava no tempo de Cristo e que ainda é o ponto central do ano para os judeus. Nos últimos anos antes de Cristo, sublinhou-se cada vez mais seu caráter escatológico e messiânico.
A palavra “páscoa”, em grego pascha, vêm do hebraico pesah (em aramaico “pasha” ou “pisha”), que parece significar “coxear, saltar, passar por cima”; talvez uma alusão a algum salto ritual e festivo dos povos mais primitivos, mas que bem cedo, com a transformação que a festa sofreu em Israel – do agrícola e cósmico ao histórico e salvífico –, passou a referir-se ao fato de que Javé “passou de largo” pelas portas dos israelitas no último castigo infligido aos egípcios (a décima praga), e mais tarde passou a referir-se à passagem do Mar Vermelho e à travessia da escravidão à liberdade.

1.3.2 A ceia pascal [3]

Nos tempos de Cristo, pode-se pensar o desenrolar da ceia pascal se dividia em quatro partes, que podemos reconstruir a partir da Mixná.
O qiddush (santificação): uma vez servido o primeiro cálice de vinho, o pai de família pronuncia a primeira bênção: “Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, rei do universo, criador do fruto da videira [...]”. Todos bebem seu cálice, lavam as mãos e trazem a comida à mesa. Comem ápio ou outra verdura (“karpas”), molhando-a num molho especial (“haroset”). Um rito importante deste prólogo da ceia é que o pai parte o pão ázimo (“matza”) em duas porções, uma das quais é escondida para ser tomada no final da ceia (“afikoman”) e a outra vai sendo dada aos comensais. Também se abre a porta, convidando simbolicamente transeuntes que precisam de lar.
A haggadah (relato, homilia): uma vez servido o segundo cálice, há um ritual, a partir das perguntas das crianças e das respostas do pai, sobre a história e o sentido desta noite pascal. É contada a história da ida ao Egito, da escravidão e da libertação com Moisés. A homilia é intercalada com cantos de louvor a Deus e, sobretudo, com uma “exortação” do pai: “em toda geração cada um é obrigado a considerar-se como se ele mesmo tivesse saído do Egito [...]. tudo isto Deus fez por mim em minha saída do Egito (Ex 13,8): não só a nossos pais redimiu o Deus santo, bendito seja, mas também nos redimiu a nós com eles”. É o conceito feito do memorial como atualização da história da salvação por parte de Deus mesmo. Bebem todos o segundo cálice, lavam as mãos e então participam da ceia pascal, caracterizada em Jerusalém, antes da queda e ruína do ano 70, pelo cordeiro pascal. A ceia termina repartindo o “afikoman” escondido no início.
A birkat há-mazon (ação de graças depois da refeição). Serve-se o terceiro cálice de vinho e então o pai pronuncia a bênção (berakah) mais solene da ceia: “Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, rei do universo, que alimentas a todo mundo com bondade [...]. Nós te damos graças, Senhor nosso Deus, porque fizeste nossos pais herdar uma terra desejável [...]. Tem piedade, Senhor nosso Deus, de Israel teu povo e de Jerusalém tua cidade [...]. Bendito és tu, Senhor nosso Deus, rei do universo, Deus fortíssimo [...]”. E todos bebem o terceiro cálice.
O hallel (salmos de louvor): antes se havia cantado o Salmo 112-113, mas agora, sobre o quarto cálice, se dizem os mais solenes, 114-117, além do Salmo 135, junto com outras bênçãos. As últimas palavras são de projeção para o futuro: “agora termina o nosso seder (ritual) [...]. Ao reunir-nos em banquete esta noite, que nos seja concedido celebrá-lo da mesma forma no futuro. Deus santo que moras nas alturas, levanta teu rebanho inumerável e leva os rebentos de teu tronco redimidos e cantando a Sião. No próximo ano em Jerusalém”.

1.3.2.1 A ceia pascal de Jesus

Se ao começar a ceia da Páscoa o desejo de Jesus nos convida a relacioná-la com as outras refeições e com o que representam, no final da ceia há também uma indicação que nos obriga a ampliar o horizonte e ver essa ceia no contexto da história do povo judeu. Refere-se à indicação de Mateus e de Marcos de que, antes de sair para o monte das Oliveiras, ‘cantaram os salmos’ (Mt 26,30). Ou seja, terminaram a ceia com o Hallel (Salmo 113-118) que acompanhava a refeição pascal, a qual, segundo só sinóticos, havia sido preparada antes a pedido de Jesus (Lc 22,8). O Hallel nos situa em um ambiente comunitário de festa e de alegria das quais Jesus participa. Nele se celebrava a intervenção salvadora de Deus em favor de seu povo humilhado e escravizado no Egito. “Eis o dia que o Senhor fez: que Ele seja nossa felicidade e nossa alegria!” (Sl 118,24). A última ceia expressa, por isso, o júbilo de Jesus pelo júbilo para esse povo. O desejo de Jesus insere-se assim no desejo de seu povo mas levando-o à plena realização. A história de Israel será recapitulada nessa ceia e a Páscoa judaica dará lugar à Páscoa definitiva, a Páscoa de Jesus.[4]
Pode-se fazer algumas considerações sobre a ceia de Jesus:[5]
                        a) a ceia de Jesus, embora não seguisse o rito da ceia pascal, se passa em um ambiente judeu e em clima festivo e pascal. Jesus age com o espírito da Páscoa e a teologia dessa festa judaica constitui o pano de fundo da última ceia, independentemente da solução ao problema histórico. A teologia da Páscoa enriquece a teologia da eucaristia.
                        b) a ausência de referências explícitas à comida pascal se deve, talvez, ao fato de que os evangelistas pretendem sobretudo ressaltar que se trata da Páscoa de Jesus. Ainda que o marco ambiental e temporal seja o da Páscoa judaica, a festa celebrada é propriamente a de Jesus: de sua Páscoa. Por isso podemos dizer que, embora Jesus (segundo os evangelistas) não siga o rito da ceia pascal judaica constitui um adequado ponto de referência para o novo êxodo do povo de Deus na nova aliança.

1.3.3 Sentido espiritual e teológico        

“A Páscoa era a festa fundacional de Israel como povo de Deus embora sua origem seja anterior ao êxodo. Talvez seja uma festa de origem nômade, ligada à natureza e seus produtos, mas os judeus a “historicizam”, isto é, a relacionam com a história e com a ação salvífica de Deus. A Páscoa é desde então a celebração anual da libertação do Egito, com tudo o que esse acontecimento comporta. Isso significa que não é mera recordação histórica do passado, mas sobretudo atualização de seu sentido no presente e de sua força libertadora; por isso se dizia que em cada geração o israelita tem de se considerar como saído do Egito”.[6]

A celebração da Páscoa era, por esse motivo, a celebração de uma presença libertadora de Javé em meio ao seu povo e a exigência de sair sempre daquilo que o Egito significava: o país da escravidão e da injustiça, “a casa da escravidão” (Dt 5,6). A certeza dessa presença no meio de seu povo é que possibilita viver a história como história de salvação. Era, por isso mesmo, uma festa aberta ao futuro, à esperança.[7]
A Páscoa se move entre o passado e o futuro. No presente se recorda e atualiza o passado mas tendo em vista um compromisso com o futuro que é preciso construir. A libertação de Deus no passado garante todas as libertações futuras mas é preciso fazê-la frutificar e crescer por meio da fidelidade à aliança no presente. Daí que a celebração e o compromisso ético com a aliança sejam inseparáveis.
Tanto a Páscoa judaica como a cristã, são festas de libertação sempre atualizada em uma refeição familiar e fraterna. É a festa do “protesto” de Deus contra uma ordem injusta estabelecida pelo ser humano. Deus não se resigna e liberta os judeus; Deus não se resigna com a morte e ressuscita seu Filho. Por isso, a Páscoa é sempre uma exigência de sair do Egito e do que o Egito significa de rupturas, injustiças e opressões. Saída sem retorno, como sugere a presença na Páscoa do pão sem levedura. A levedura é o elemento que enfatiza a continuidade, um pedaço de massa hoje fermenta a de amanhã e assim sucessivamente. Ao não ter levedura, trata-se de uma massa nova que rompe radicalmente com o passado, como sugere Paulo aos cristãos de Corinto: “Pois o Cristo, nossa Páscoa, foi imolado. Celebremos pois a festa, não com fermento velho, nem com fermento de maldade e perversidade, mas com pães sem fermento: na pureza e n verdade” (1Cor 5,7-8).

Pode-se dizer que a ceia pascal aparece como uma chave riquíssima que resume toda a dinâmica da salvação: une mais a comunidade, a introduz e renova na aliança e comunhão com Deus, convida à alegria, bênção e ação de graças, alimenta a esperança messiânica.