22/10/2015

Jesus e Maria Madalena no jardim (Jo 20,11-18)

“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi bem cedo ao túmulo de Jesus, quando ainda estava escuro. E logo viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo” (Jo 20,1). A comunidade continua no escuro, ainda não vivenciou a experiência da ressurreição. Todos os evangelhos citam a presença de Maria Madalena no momento da morte como testemunha e anunciadora da ressurreição. Quem é essa mulher?
Maria Madalena foi uma liderança importante nas origens do movimento de Jesus. Eis algumas observações sobre Maria Madalena nos evangelhos:
– Seguiu Jesus desde a Galileia até o momento da morte: “Também algumas mulheres estavam aí, olhando de longe, entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago Menor e de Joset, e Salomé. Elas seguiam e serviam Jesus, quando ele estava na Galileia. E muitas outras que tinham subido com ele para Jerusalém” (Mc 15,40-41; Mt 27,55-56; Lc 23,49).
– Ela, juntamente com outras mulheres, mesmo de longe, observou o sepultamento de Jesus (Mc 15,45-47). É fiel até o fim!
– Ao lado de outras mulheres, ela vai ao túmulo no primeiro dia da semana (Mc 16,1-2; Mt 28,1; Lc 24,1.10).
– Está entre as primeiras a receber e comunicar a notícia de que Jesus ressuscitou (Mt 28,5-8).
– Ela e outras mulheres são as primeiras que veem Jesus depois da ressurreição: “Eis que Jesus foi ao encontro delas e disse: ‘Alegrem-se!’ Elas então se aproximaram, abraçaram-lhe os pés e se ajoelharam diante dele. Então Jesus lhes disse: ‘Não tenham medo! Vão avisar meus irmãos que se dirijam para a Galileia. Aí eles me verão’” (Mt 28,9-10).
Além dos evangelhos canônicos, há outros textos antigos que citam a presença de Maria Madalena, existe até mesmo um evangelho cuja autoria lhe é atribuída. Nos primeiros séculos, Maria Madalena foi referência muito importante e significativa para as comunidades cristãs. No Evangelho de João, ela representa a comunidade, chamada a vivenciar e anunciar a ressurreição (Jo 20,18). Vejamos, passo a passo, como esse autor descreve o encontro no jardim entre Jesus e Maria Madalena.
Mesmo encontrando o túmulo vazio, a sua busca continua: “Maria continuava ali, chorando junto ao túmulo” (Jo 20,11). Ela é imagem da comunidade inconsolada com a morte de seus membros e com dificuldade de perceber os sinais de ressurreição. Essa situação é descrita numa linguagem simbólica, inspirada no livro do Cântico dos Cânticos. Nesse livro, a jovem sai ao encontro do amado“Em meu leito, durante as noites, saí à procura do amado da minha vida. Eu o procurei, mas não o encontrei! Preciso levantar-me, dar uma volta pela cidade, pelas ruas e praças à procura do amado da minha vida. Eu o procurei, mas não o encontrei!” (Ct 3,1-2). Maria vai ao sepulcro chorar a morte do Senhor. Ela está presa à ideia da morte como o fim de tudo. De longe, no escuro, Maria Madalena percebe que o túmulo está vazio. Desesperada, vai ao encontro dos discípulos, que constatam o fato e retornam para casa. Maria permanece chorando junto ao sepulcro.

A mulher, angustiada e ainda chorando, olha para o interior do túmulo e vê dois anjos. No livro do Cântico dos Cânticos, a jovem pergunta aos guardas: “Acaso vocês viram o amado de minha vida?” (Ct 3,3). No Evangelho de João, são os anjos que perguntam a Maria a razão de sua dor. A mulher responde: “Tiraram o meu Senhor daqui, e não sei onde o colocaram” (Jo 20,13), expressão da dificuldade da comunidade em tomar consciência da ressurreição de Jesus. A dor, o desespero e o medo não deixam a comunidade perceber que a vida é mais forte que a morte.
O seu objetivo é encontrar o corpo do Senhor. Jesus se aproxima e lhe pergunta: “‘Mulher, por que você está chorando? A quem está procurando?’ Maria pensou que fosse o jardineiro e disse: ‘Se foi você que o levou, diga-me onde o colocou, eu vou buscá-lo’” (Jo 20,15). Enquanto Maria continuar olhando para o túmulo, não poderá encontrar-se com Jesus, pois ele não está no sepulcro. A mulher continua sem esperança, ainda não conseguiu ver os sinais de vida, mas, apesar disso, persiste na busca. O termo mulher foi usado para a Mãe, em Caná e na cruz, e para a Samaritana (Jo 2,4; 19,26; 4,21). Maria Madalena representa a comunidade como “esposa” da nova aliança, que busca o esposo no meio da desolação. Ela chama Jesus de meu Senhor, tratamento dado ao marido conforme o costume da época. Porém, ela continua perplexa, sem nada entender…
Maria Madalena reconhece Jesus só quando ele a chama pelo nome: “‘Maria’. Ela voltou-se e exclamou em hebraico: ‘Rabuni!’, que quer dizer ‘Mestre’” (Jo 20,16). Agora, ela já não olha para o sepulcro. Seu olhar é dirigido para o Ressuscitado. É o início da nova criação. Maria faz a experiência de ser amada e acolhida como discípula: “Não tenha medo, porque eu o protegi e o chamei pelo nome. Você é meu” (Is 43,1). Ela é a ovelha que reconhece a voz do pastor (Jo 10,2-3). Uma situação semelhante é descrita no Cântico dos Cânticos: “Eu dormia, mas meu coração estava desperto a ouvir a voz do meu amado” (Ct 5,2).
É a experiência humana de intimidade, de convivência no amor, que faz a pessoa viver. Quando Maria encontra o amado, é um momento de grande alegria e emoção. Ela quer abraçar e prender o Senhor. No entanto, Jesus lhe diz: “Não me retenhas, pois ainda não subi para junto do Pai. Mas vá encontrar os meus irmãos e diga a eles: ‘Eu estou subindo para junto do meu Pai e Pai de vocês, do meu Deus e Deus de vocês’” (Jo 20,17).
Não, a missão ainda não acabou. É preciso continuar as obras de Jesus. O Reino de Deus é para todos, por isso é necessário que Maria vá anunciar aos “meus irmãos”; e isso, no contexto da comunidade de João, não é apenas para os discípulos e discípulas: o anúncio é universal. Todos são chamados ao amor, a experimentar o Ressuscitado vivo na comunidade (Jo 20,19-31).
É preciso ir além da narrativa e ver o simbolismo dessa cena. Jesus é o esposo da nova aliança, da nova criação (Jo 2,1-11), e Maria Madalena é a comunidade como a nova esposa. Como no livro do Gênesis, eles estão no jardim: a morte e a glorificação de Jesus dá origem a nova humanidade. É a nova criação. Maria Madalena procura, encontra, vê, ouve, acredita e anuncia. O amor vence o temor, e a vida desabrocha e floresce até os nossos dias! A vida triunfou! Ele continua vivo e presente entre nós!
Textos exclusivos de João na narrativa da paixão, morte e ressurreição de Jesus
Todos os evangelhos narram a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus. Ao ler esses relatos, não é difícil perceber uma longa história de redação, condicionada pelas diferentes realidades das várias comunidades cristãs. A última palavra de Jesus na cruz, por exemplo, é boa amostra de recordações, reflexões e interpretações de cada comunidade:
– “Às três da tarde, Jesus deu um grande grito: ‘Eloi, Eloi, lamá sabactâni’, que traduzido significa: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ Então Jesus, dando um grande grito, expirou” (Mc 15,34.37).
– “Perto das três da tarde, Jesus deu um forte grito: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’ Quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ E de novo Jesus deu um forte grito e entregou o espírito” (Mt 27,46.50).
– “Jesus deu um forte grito: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’” (Lc 23,46).
– “‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,30). Diferentemente dos sinóticos, em João, Jesus não morre: é Deus. Ele se entrega!
É evidente que a comunidade joanina interpreta a morte de Jesus como a consumação da obra designada pelo Pai. Nas bodas de Caná (Jo 2,1-11), o primeiro sinal, Jesus Cristo afirma: “Minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4). Após a realização dos sete sinais, primeira parte do evangelho (Jo 2,1-11,54), Jesus Cristo, em sua despedida da comunidade (13,1-17,26), é descrito da seguinte forma: “Jesus sabia que tinha chegado a sua hora, a hora de passar deste mundo para o Pai. Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
A morte de Jesus é compreendida como a vitória do amor, da verdade e da vida sobre o mundo da morte: “Eu venci o mundo” (16,33). E o último gesto de Jesus é “entregar o espírito”, o espírito do Pai, que acompanhou e orientou toda sua obra. Após a ressurreição, o mesmo Espírito voltará à comunidade para guiá-la no caminho da verdade e da vida: “Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20,22).
 No relato da paixão, da morte e da ressurreição, a comunidade joanina acrescenta vários textos exclusivos em vista de sua realidade, de seus problemas e conflitos, sobretudo com o mundo (o império romano e os judeus fariseus). Era necessário para a comunidade, perseguida pelo mundo, elaborar mensagens e argumentos para fortalecer seus membros. Eis alguns desses textos exclusivos de João:
  • Jesus diante de Pilatos: “Jesus respondeu: ‘O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos teriam lutado para eu não ser entregue aos judeus. Mas agora meu reino não é daqui’” (Jo 18,36). O reino de Jesus não é da ordem – poder e dominação – do império romano. Sim, é Reino do Céu, ou seja, reino do “meu Pai”, caracterizado pelo amor: “Deus é Amor: quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Na fidelidade e na firmeza na comunhão do amor de Jesus, o reinado da verdade de Deus se realiza: “Se vocês permanecem na minha palavra, são de fato meus discípulos; e conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês” (Jo 8,31-32); “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6); “Quem é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18,37).
  • O rei Jesus: “Pilatos disse aos judeus: ‘Aqui está o rei de vocês’. Eles gritavam: ‘Fora! Fora! Crucifique-o!’ Pilatos lhes disse: ‘Mas eu vou crucificar o rei de vocês?’ Os chefes dos sacerdotes responderam: ‘Nós não temos outro rei, senão César’. Então Pilatos lhes entregou Jesus para ser crucificado” (Jo 19,14-16a). Depois de ameaçar Pilatos para condenar Jesus (Jo 19,12-13), a autoridade judaica aclama César seu único rei, para manter seu privilégio junto ao poder do império romano. Com a descrição da leviandade dos judeus, a comunidade joanina denuncia a falsidade e a perversidade dos judeus fariseus, a autoridade religiosa do seu tempo. Para a comunidade cristã, Jesus é o único rei com a força do amor, da justiça e da fidelidade.
  • Jesus e sua mãe: “Junto à cruz de Jesus estava sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí o seu filho!’ Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí sua mãe!’ E desde essa hora o discípulo a recebeu em casa” (Jo 19,25-27). Enquanto os três evangelhos sinóticos registram a permanência das mulheres à distância da cruz, o Evangelho de João apresenta, junto à cruz, as mulheres e o discípulo amado. Nas falas de Jesus, Maria, sua mãe, recebe o tratamento de “mulher”, a discípula fiel ao amor de Jesus (Jo 2,4; 19,26), a qual, com o discípulo amado, funda nova comunidade de amor. E então nasce ao pé da cruz a Igreja com o Espírito Santo, nova humanidade e novo Israel, para continuar a missão do servo crucificado e morto por causa da prática da justiça, da solidariedade e do amor (Jo 19,30; 20,22).
  • O golpe de lança: “Quando se aproximaram de Jesus, viram que já estava morto; por isso, não lhe quebraram as pernas. Mas um dos soldados lhe perfurou o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água. Essas coisas aconteceram para se cumprir a Escritura: ‘Nenhum osso dele será quebrado’. E ainda outra passagem diz: ‘Olharam para aquele a quem traspassaram’” (Jo 19,33-34.36-37). Jesus morto na cruz é o verdadeiro messias. Nele, as palavras da Escritura são confirmadas: a primeira citação, que vem de Ex 12,46, testemunha Jesus como o cordeiro da nova Páscoa, a festa da libertação; a segunda, que vem de Zc 12,10, serve para comprovar a inocência de Jesus. Os homens, ao contemplar o “traspassado”, arrependem-se e entram em luto: “Quanto àqueles que traspassaram, chorarão por ele como se chora pelo filho único”. Confirma-se que a morte de Jesus não é o fim. Do sangue (a sede da vida, Gn 9,4) e da água (símbolo do Espírito, cf. Is 44,3) de Jesus Cristo brota a vida para todos e todas.
  • Crer sem ver: Tomé, ausente na ocasião da aparição de Jesus, ao reencontrar os demais discípulos (Jo 20,24-25), poderia ter acreditado no testemunho deles, afirmando sua fé sem ver e tocar (cf. Jo 20,8). Oito dias depois, Jesus volta ao meio deles, agora com a presença de Tomé. Vendo e ouvindo Jesus, sem tocá-lo, faz sua confissão de fé. Ao vacilar entre o ver e o crer, Tomé motivou o pronunciamento de Jesus sobre a bem-aventurança dos que creem sem ver o Ressuscitado: “Felizes os que não viram e acreditaram” (Jo 20,29). As narrativas de aparição são um fator de convencimento da comunidade sobre a presença de Jesus vivo em seu meio.
Todos esses textos exclusivos de João têm como pano de fundo a situação da comunidade joanina, que sofre com as perseguições e os conflitos internos. É preciso alimentar a fé na presença de Jesus crucificado e ressuscitado no meio da comunidade para orientar e fortalecer a missão e o testemunho cristão no mundo do império romano.
Hoje, somos chamados à convivência do amor do Crucificado (At 2,42-47) e à bem-aventurança dos que creem sem ver o Ressuscitado (Jo 20,19-20; cf. 1Pd 1,3-9). A fé em Jesus de Nazaré ressuscitado, que continua vivo entre nós, leva a reconhecer sua presença nos sinais do amor manifestado nas diversas comunidades e culturas dos nossos tempos. Assumir essa fé no Deus da vida nos move à solidariedade global pela paz e pela vida, superando o império da fome, da guerra e da morte.