A intimidade com a Palavra Viva é um dos aspectos mais
importantes do nosso relacionamento pessoal e íntimo com o Ressuscitado que
passou pela cruz. Daí nosso fundador enfatizar tantas vezes a necessidade de
convivermos com a Palavra de modo oracional, pessoal e íntimo, seguindo a
metodologia da lectio divina. Não se
cansa de repetir o adágio: “Desconhecer as Escrituras é desconhecer
Cristo” (São Jerônimo) acrescentando, em seguida, que este conhecimento
é do tipo bíblico, conhecimento amoroso, esponsal, profundo, íntimo,
interpessoal.
O grande risco aqui é dissociar ou nem chegar a perceber
a profunda ligação entre o Ressuscitado e a Palavra viva através da qual Ele,
pessoalmente, nos leva a conhecê-Lo e amá-Lo como Esposo, Senhor e Rei. Na
verdade, essas três dimensões do Ressuscitado em nossa vocação, correspondem
aos três sentidos espirituais tradicionais das Escrituras. O relacionamento com
o Esposo
corresponde ao sentido analógico; com o Senhor, ao sentido moral; com o Rei
ao sentido alegórico.
A íntima relação entre nós e o Ressuscitado, a Palavra
Viva, porém, ultrapassa qualquer categoria intelectual. Ela pertence à infinita
abrangência da amizade com Deus, do encontro amoroso entre duas pessoas,
encontro de duas liberdades: a nossa, de buscá-Lo, e a d’Ele, que sempre se dá
livre e inteiramente.
Compreendemos bem, a nível intelectual, que o
Ressuscitado e o Verbo são a mesma e eterna pessoa divina do Filho. Em geral,
porém, custa-nos compreender o incomparável impacto que a Paixão e Ressurreição
do Senhor têm com relação às Sagradas Escrituras como Palavra Viva.
Sabemos que todas as Sagradas Escrituras, em sua unidade
e coerência verdadeiramente divinas, podem resumir-se em uma só palavra:
CRISTO. Como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica: as Escrituras, do
Gênese ao Apocalipse se resumem no Mistério de Cristo: sua Encarnação, Vida,
Paixão, Morte, Ressurreição, Ascenção ao Céu, Envio do Espírito Santo e Parresia, sua Pessoa.
São Tomás de Aquino aprofunda um aspecto desta realidade
e, com ele, enche ainda mais nossa alma de pasmo e alegria:
“O coração de
Cristo designa a Sagrada Escritura, que dá a conhecer o coração de Cristo. O coração
estava fechado antes da Paixão, pois a Escritura era obscura, mas a Escritura
foi aberta após a Paixão, pois os que a partir daí têm a compreensão dela
consideram e discernem de que maneira as profecias dever ser interpretadas”.
(Expositio in Psalmos, 21,11, in Catecismo da Igreja Católica, 112).
O coração de Cristo designa, portanto, a Sagrada
Escritura. A Sagrada Escritura dá a conhecer o coração de Cristo e vice versa.
Antes da paixão, as Escrituras eram obscuras, pois somente diante do Mistério
de Cristo podem ser inteiramente interpretadas.
“Não ardia o nosso
coração quando ele nos falava pelo caminho, e nos falava e explicava as
Escrituras” (Lc 24,32)
Em meio aos ciprestes e às figueiras, com o perfume das
primeiras flores da primavera, o Sol se despede de mais um dia. Sobra uma amena
e suave brisa. Dois homens apressam o passo rumo a Emaús, um povoado que dista
cerca de onze quilômetros de Jerusalém. Estão profundamente tristes. Os seus
sentimentos e suas vicissitudes fazem-nos pensar em nossa caminhada, ao
depararmos com as várias realidades de morte, que enfrentamos nessa época de
nossa história.
Como os dois discípulos que estavam tristes e diziam: “Nós esperávamos fosse que ele quem iria
redimir Israel: mas...” Humanamente falando, muitas vezes, nos sentimos
cansados, tristes, com a situação do mundo de hoje. No entanto, somos chamados
a esperar contra toda a esperança, não podemos ter a desilusão de quem espera
apoiado em esperanças sem retorno.
Jesus, que os discípulos julgam ser um peregrino, explica-lhes
as Sagradas Escrituras, iniciando por Moisés e prosseguindo com os profetas,
para lhes fazer entender uma verdade enigmática: “Não era preciso que Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória”.
Cristo, o Crucificado-Ressuscitado, por meio de sua manifestação
aos discípulos de Emaús, revela-nos claramente que o mistério da morte e da
vida, a Cruz e Ressurreição são a chave para compreendermos as Sagradas
Escrituras e por meio destas, a nossa existência. A nossa esperança não terá
consistência alguma se não for baseada na Palavra de Deus, no mistério da Cruz
e da Páscoa gloriosa de Cristo gloriosa de Cristo.
Cristo se faz presente nas nossas vidas quando lemos as Sagrada
Escrituras e buscamos iluminar nossa vida a partir dela. A sua companhia aos
discípulos, o caminho percorrido com eles indica a inefável certeza de sua
presença em meio a nós ao longo de nossa história, como luz que ilumina e fogo
que aquece os corações.
Como com os discípulos de Emaús, o próprio Ressuscitado abre
nossa inteligência e nos capacita para o acolhimento e entendimento das
Sagradas Escrituras, tendo o próprio Mistério de Sua Paixão, Morte e
Ressurreição, como centro de nossa fé e íntima relação com Ele, ao mesmo tempo
que dá sentido à nossa peregrinação até o convívio eterno com a Trindade.
Transpassado
na cruz e revelado pela chaga gloriosa em Jo 20,19ss, o Coração de Jesus
Ressuscitado, que abre para nós a porta de acesso à Trindade, como não abriria,
igualmente o acesso às Escrituras Sagradas jogando sobre elas a luz do Espírito
e a realidade da Revelação? Como não revelaria a Palavra Viva a Pessoa de
Cristo, o Verbo Vivo de Deus, Cabeça da Igreja e seu Esposo? Como não daria à
Esposa acesso a todas as Suas riquezas o Esposo Ressuscitado, incluindo o
tesouro inesgotável da Palavra?
Ao contemplar o Ressuscitado que
passou pela cruz e mergulhar pela fé em Seu coração aberto por amor a nós e
para a nossa salvação, encontramos todos os tesouros do amor divino, inclusive
aquele humildemente expresso em nossas pobres sílabas a explodir em luz
inefável revelando o rosto do Esposo. Para nós, que somos Shalom, a Palavra
viva do Senhor, é o mesmo Ressuscitado que contemplamos no capítulo 20 do
Evangelho segundo João.
“Ao cair da tarde daquele primeiro dia da semana, estando os
discípulos reunidos a portas trancadas, por medo dos judeus, Jesus entrou,
pôs-se no meio deles e disse: ‘A Paz seja com vocês!’ Tendo dito isso,
mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se quando viram o
Senhor. Novamente
Jesus disse: ‘A Paz seja com vocês! Assim como o Pai me enviou, eu os envio’.”
(Jo 20, 19-21)
Tal Palavra, entretanto, é viva na
intimidade do nosso coração graças a Sua Ressurreição e passagem pela cruz e ao
Espírito que o Ressuscitado sopra constantemente sobre nós. Ele, que é o centro
de todas as Escrituras, dá-nos sentido pleno em sua ressurreição. Ele, que é o
Esposo Ressuscitado, infunde-as em nosso coração através da graça da Leitura Orante da Palavra inscrita no
Seu Coração Ressuscitado, escrita por Ele, n’Ele e para Ele. Para nós, a
Palavra viva é de forma especial a Palavra Ressuscitada, o mesmo Verbo Vivo que
por amor se esconde no balbucio de nossas sílabas e nos esconde, silenciosos,
orantes e mergulhados no Verbo, na chaga aberta do Seu Coração Ressuscitado.
Por Sua graça, torna possível o que humanamente seria impossível aos menores,
mais fracos: por Seu coração misericordioso dá-nos acesso aos segredos da Vida
Trinitária.
Et Verbum (São João Da Cruz / Kelly Patricia)
No princípio morava o Verbo e em Deus vivia, / nele sua
felicidade infinita possuía / O mesmo Verbo Deus era e o princípio se dizia /
Ele morava no princípio e princípio não havia / Ele era o mesmo princípio, por
isso d'Ele carecia. / O Verbo se chama Filho, pois do princípio nascia. / Ele
sempre O concebeu, e sempre O conceberia. / Dá-Lhe sempre sua substância e
sempre a conservaria. / E assim a glória do Filho é a que no Pai havia / E toda
a glória do Pai no Seu Filho a possuía. / Como Amado no Amante, um no outro
residia / E esse Amor que Os une no mesmo coincidia. / Et Verbum caro factum
est. (4x)
Por vezes, podemos pensar
que a Palavra escrita na Bíblia Sagrada, seja letra morta, e assim, não a
acolhemos como Palavra Viva, ou seja, como o próprio Verbo Encarnado: o
Ressuscitado que nos fala como falou aos discípulos de Emaús, trazendo em Si
mesmo a plenitude da revelação e o cumprimento da lei e das profecias,
fazendo-nos compreender a Palavra, fazendo-nos compreendê-Lo.
Nas Igrejas mais antigas
O Papa Francisco mostra
que a palavra alcança a máxima eficácia no sacramento:
“Não é só a homilia que se deve alimentar da palavra de Deus.
Toda a evangelização está fundada sobre esta palavra escutada, meditada,
vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é a fonte da
evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da
palavra. A Igreja não evangeliza se não se deixa continuamente evangelizar. É
indispensável que a palavra de Deus ‘se torne cada vez mais o coração de toda a
atividade eclesial’. A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na
eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de
um autêntico testemunho evangélico na vida diária. Superamos já a velha
contraposição entre palavra e sacramento e, no sacramento, essa palavra alcança
a sua máxima eficácia” (Evangelii Gaudium,
n.174).
É o primeiro dia da
semana, dia do Senhor. Ele está no meio de nós. Somos uma comunidade reunida em
nome d’Ele. Ele nos revigora, abre nossos olhos e nossos ouvidos para lermos os
acontecimentos à luz do seu mistério pascal.
Não há do que duvidar: Ele
é aquele de quem falava as Escrituras, como testemunham as leituras de hoje.
Na celebração, a
proclamação da Palavra ganha pleno significado, como relata a introdução do
lecionário: “a economia da salvação, que
a palavra de Deus não cessa de recordar e prolongar, alcança seu mais pleno
significado na ação litúrgica, de modo que a celebração litúrgica se converta
numa contínua, plena e eficaz apresentação desta palavra de Deus. Assim, a
palavra de Deus, proposta continuamente na liturgia, é sempre viva e eficaz
pelo poder do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo do Pai, que nunca deixa
de ser eficaz entre as pessoas” (Ordenamento das Leituras da Missa – OLM,
n.4).
Ele é também aquele que
entra em nossa casa, senta à mesa conosco e partilha conosco seu Corpo entregue
e seu Sangue derramado.
Vale lembrar o que afirma
o Elenco das Leituras da Missa: “Espiritualmente
alimentada nestas duas mesas, a Igreja, em uma, instrui-se mais, e na outra se
santifica mais plenamente; pois na Palavra de Deus se anuncia a aliança divina,
e na Eucaristia se renova esta mesma aliança nova e eterna. Numa, recorda-se a
história da salvação com palavras; na outra, a mesma história se expressa por
meio de sinais sacramentais da Liturgia. Portanto, convém recordar sempre que a
palavra divina que a Igreja lê e anuncia na Liturgia conduz, como a seu próprio
fim, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, isto é, a Eucaristia.
Assim, a celebração da missa, na qual se oferece a Deus o sacrifício de louvor
e se realiza plenamente a redenção do homem” (Ordinarium LM, n.10).
A saudade é a benfazeja
presença do ausente. Quando alguém da família ou uma pessoa querida está longe,
a gente procura se lembrar dessa pessoa. É o que aconteceu com os discípulos de
Emaús. Jesus fora embora... mas, sem que o reconhecessem, estava caminhando com
eles. Explicava-lhes as Escrituras. Mostrava-lhes o veio escondido do Antigo
Testamento que, à luz daquilo que Jesus fez, nos faz compreender ser ele o
Messias: os textos que falam do Servo Sofredor, que salva o povo por seu
sofrimento (Is 52-53); ou do Messias humilde e rejeitado (Zc 9-12); ou do povo
dos pobres de Javé (Sf 2-3) etc. Jesus ressuscitado mostrou aos discípulos de
Emaús esse veio, textos que eles já tinham ouvido, mas nunca relacionado com
aquilo que Jesus andou fazendo... e sofrendo.
Isso é uma lição para nós.
Devemos ler a Sagrada Escritura por intermédio da visão de Jesus morto e
ressuscitado, dentro da comunidade daqueles que nele creem. É o que fazem os
apóstolos na sua primeira pregação, quando anunciam ao povo reunido em
Jerusalém a ressurreição de Cristo, explicando os textos que, no Antigo
Testamento, falam dele, como mostra a primeira leitura de hoje. Para a
compreensão cristã da Bíblia, é preciso ler a Bíblia na Igreja, reunidos em
torno de Cristo ressuscitado.
O que aconteceu em Emaús,
quando Jesus abriu as Escrituras aos discípulos, é parecido com a primeira
parte de nossa celebração dominical, a liturgia da palavra. E muito mais
parecido ainda com a segunda parte, o rito eucarístico: Jesus abençoa e parte o
pão, e nisso os discípulos o reconhecem presente. Desde então, a Igreja repete
esse gesto da fração do pão e acredita que, neste, Cristo mesmo se torna
presente.
Emaús nos ensina as duas
maneiras fundamentais de ter Cristo presente em sua ausência: ler as Escrituras
à luz de sua memória e celebrar a fração do pão, o gesto pelo qual ele realiza
sua presença real, na comunhão de sua vida, morte e ressurreição. É a presença
do Cristo pascal, glorioso – já não ligado ao tempo e ao espaço, mas acessível
a todos os que o buscam na fé e se reúnem em seu nome.
Alimentados nestas mesas,
recebemos do Senhor força e coragem para a entrega de nossa própria vida do
mundo.
(Artigo de Maria Emmir Oquendo Nogueira,
extraído da Revista Shalom Maná nº 177, março, 2008.)